Nzo Tumbansi reúne líderes de matrizes africanas nas homenagens de 80 anos de iniciação de Mãe Xagui

O Nzo Tumbansi, Terreiro de Candomblé de feição bantu, estabelecido a Rodovia Armando Salles, 5205, bairro Recreio Campestre, Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, esteve em festa de celebração a Mutaloombô.

Mãe Xagui quando chegava ao Nzo Tumbansi, cumprimentando
e e recebendo o pedido de benção de Taata Katuvanjesi

Na sexta-feira, 12 de maio, o Terreiro recebeu a visita do congolês Samba Tomba, historiador, linguista bantu-kongo, graduado em Antropologia e pós-graduando em Ciências Sociais. Na madrugada de sábado, dia 13, foi a vez da chegada da repórter cinematográfica Victória Roque e do cineasta Márcio Brito Neto, produtor de Muzenza – O Filme.

Antes do inicio da cerimônia festiva e tradicional, Taata Katuvanjesi recebeu a visita do advogado Claudio Silvestre Junior, secretário de Governo, Ciência e Tecnologia da Prefeitura de Itapecerica da Serra, que representou o prefeito Jorge Costa, o diretor da Secretaria de Inclusão e Desenvolvimento Social, professor Paulo Sérgio Barboza(PC), que representou a secretária Helena Regina de Oliveira (Helena Rol).

Músico e compositor Tiganá Santana, que celebrou Mukongo e toda
cerimônia com cânticos na tradição bantu-kongo e foi homenageado

Passavam das 22h00 do dia 13 de maio, quando Taata Katuvanjesi (Walmir Damasceno) autorizou aos N`sikingoma (Tocadores dos Tambores sagrados), Kyalundi (Alex Damasceno), Diego Garcia e Kamwele N`ganga (Anderson Garcia), o inicio do N`kembo (Festejo, em língua Kikongo). O evento foi marcado também pela realização de um grande encontro entre seguidores das várias tendências de candomblé para festejar os Espíritos Ancestrais, a festa de celebração a Mutaloombô. O Nzo Tumbansi ficou pequeno para acomodar o público de aproximadamente 300 pessoas.

Nengwa Xagui dançando no Nzo Tumbansi
sob os olhares atento do público

O ponto alto da festa foi o momento em que os presentes se juntaram para ver a entrada majestosa de Mãe Xagui, sacerdotisa máxima do Terreiro Tumbancé, de Salvador. Acompanhada de comitiva integrada por, dentre outros, Makota Mayangansi (Veridiana Machado), Mãe Xagui pisou no solo sagrado de Tat`etu Ngana Kavungu, sendo recebida com cânticos e reverencias que reproduziram as cerimônias realizadas nos reinos africanos em que soberanos e dignatários são recebidos com todo esplendor.

Taata Katuvanjesi prestou uma grande homenagem aos 80 anos de iniciação de Nengwa Xagui, filha do Oxoguiã, considerado o mais antigo, de que se tem registro, em Salvador. Presenteou a venerada sacerdotisa baiana com uma escultura em madeira, simbolizando a ancestralidade bantu-kongo, feita artesanalmente por Taata Anderson Mendes, de Nkosi. A referida Senhora foi igualmente condecorada com título de Grande Benemérita da Cultura Tradicional Bantu. No mesma oportunidade foram homenageados o cantor e compositor baiano, Tiganá Santana; o secretário de Governo, Ciência e Tecnologia, advogado Claudio Silvestre Junior; o Ogan-mestre Sapopemba; e a Koota Kitamazi N`ganga, a médica Eunice Bernardes, presidenta do Conselho de Ministros do Nzo Tumbansi, uma espécie de conselho religioso.

Mãe Xagui, visivelmente satisfeita e emocionada, agradeceu e abençoou a todos, causando surpresa ao cantar e dançar para os Bankisi em solo sagrado do Nzo Tumbansi.

Homenagem aos espíritos Ancestrais

A festa se desenvolveu com fervor madrugada adentro ao som suave dos atabaques e de cânticos entoados melodicamente e com maestria pela voz do Kambandu (Ogan) e também compositor e cantor baiano, Tiganá Santana, exaltando os Bankisi, na presença de centenas de convidados e visitantes celebrando o rito da “colheita e fartura” e os “Frutos da Terra”, em menção aos primeiros frutos em África, quando os povos africanos reservavam determinado momento para festejar a fartura, a colheita e, juntos, cantavam, dançavam, comiam, bebiam e comemoravam a colheita das primeiras frutas, que trariam os primeiros alimentos que cresceram ou iguarias feitas para esta festa. Esta comemoração guarda semelhança com a maneira como faziam nossos ancestrais antes de serem sequestrados pelos europeus.

Nengwa Xagui sendo homenageada e condecorada com
título de Grande Benemérita da Cultura Tradicional Bantu

Para Katuvanjesi, “receber a visita de Mãe Xagui e homenageá-la em solo sagrado de Tat`etu Ngana Kavungu tem um significado maior: o fortalecimento da ancestralidade africana no Brasil, o reconhecimento e a legitimidade do Terreiro de tradição Congo-Angola em terras paulistanas”.

Mãe Xagui – 80 anos de paz e exemplo de vida

Primogênita dentre seis irmãos, Carmelita Luciana Souza nasceu em 17 de março de 1929, na cidade de Salvador da Bahia. É filha da senhora Arcanja das Virgens, Nengwa Kwa Nkisi Kassutu, e de Apolinário Luciano de Souza. Sua mãe, Arcanja (Nengwa Kassutu), foi iniciada em 5 de junho de 1932 por Maria Genoveva do Bonfim, a saudosa Maria Neném (Mam’etu Tuenda dia Nzambi), é matriarca do Terreiro Tumbenci (Cá te espero), anteriormente chamado de Terreiro de Santa Luzia, Fé e Razão. Até hoje o terreiro localiza-se no antigo bairro do Beirú, uma das matrizes da Nação Kongo Angola no Brasil.

Deputada Leci Brandão, Nengwa Xagui e Taata Katuvanjesi um dia
antes da festa no Seminário Enfretamento do Racismo Institucional
e Religioso na Câmara Municipal de Itapecerica da Serra/SP

Desta maneira, iniciou-se o enredo da menina Carmelita com o Candomblé, pois constantemente acompanhava sua mãe Arcanja na “roça” de sua avó Maria (Mãe Xagui, como se refere à matriarca do Tumbenci até os dias de hoje). Numa das lembranças das visitas ao Tumbenci, aos 07 anos de idade, no final de julho de 1936, Mãe Xagui afirmou: “Eu não me lembro direito. Não sei se era uma festa pro Kavungu dela ou se era outra coisa. Eu só sei que eu e meus irmãos fomos com minha mãe lá pra roça de minha avó Maria. E naquele tempo menino ficava solto, andando pela roça. Não tinha direito de perguntar nada, de se meter em conversa de mais velho. Então o pau comia! Mas a gente podia ficar livre pela roça porque minha avó gostava muito de criança e queria que a gente ficasse solta, brincando… Foi quando eu soube que numa roça ali perto ia ter uma missa e uma procissão pra São Roque, e eu, muito abelhuda quis ir ver como era. Me piquei sozinha pra essa roça… Cheguei lá vi umas pessoas sentadas na dicisa aí peguei e sentei também. Tudo o que elas faziam eu fazia também. E fui indo escondida pra lá todos os dias da missa, até que eu já me vi recolhida… Mas eu até hoje não me lembro como foi que eu passei da sala pro Barracão, juro a você, eu não me lembro como é que eu fui parar lá dentro.”

O Terreiro que reverenciava São Roque era o Tumba Junsara, fundado por Manoel Rodrigues do Nascimento (Kambambe) e Manuel Ciríaco Nascimento de Jesus (Nlundyamungongo), iniciados em 13 de junho de 1910, também pela Matriarca Maria Neném.

Carmelita foi então iniciada aos 7 anos de idade pelo Taata Nkisi Nlundyamungongo e Bada Olufã Deiy (Ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá) no Tumba Junsara. Mãe Bada foi mãe pequena do Taata Nlundyamungongo que, ao notar no barco dos azenza a presença de um Orixá entre os Bankisi (Oxoguiã), imediatamente reivindicou a presença de Bada Olufã Deiy para a iniciação da menina Carmelita.

Taata Katuvanjesi – Walmir Damasceno, Taata Alamussanjy e Nengwa Xagui

O Barco dos azenza foi composto por 12 pessoas: 2 pessoas de Kayala, 1 de Dandalunda, 2 de Nkosi, 1 de Gangazumba, 2 de Lemba, 2 de Bamburucema, 1 de Kavungo, 1 pessoa de Mutalambô, com a ressalva de que a filha de Gangazumba estava grávida de um menino de Nzazi. Logo seu barco foi de 13 pessoas. Xagui foi a dijina trazida por Oxoguiã, dia 29 de dezembro de 1936.  

Desde então, a muzenza Xagui sempre que visitava o Tumba Junsara, Taata Nlundyamungongo, estendia sua estadia na roça por quase um mês. E não permitia que a mesma ficasse junto às outras filhas-de-santo. Sempre que alguma delas exigia algo da menina, o Taata aparecia e não permitia; também demonstrava ter um carinho especial por seu “menino”, modo pelo qual Taata Nlundyamungongo se referia a Oxoguiã.

E a assim, a menina sob os cuidados de seu pai participava das atividades da roça carregando água na fonte, passando roupas quando o ferro ainda era a vapor, colocando as saias na goma, fazendo acarajé na pedra, ralando milho e feijão etc. Estava acostumada a acompanhar as obrigações, normalmente durante três dias de festa, tanto no Tumba Junsara, quanto no Terreiro Tumbancé, fundado por sua Mãe Arcanja em 1943 no bairro da Pero Vaz.

Mãe Xagui lembra que “gostava muito de cantar e dançar, era a dona do pedaço”, mas não lhe passava, até então, pela cabeça a hipótese de vir a se tornar uma Nengwa dia Nkisi.  

Foi precisamente em junho de 1945, em uma festa no Tumbansé, Tat’etu Nzazi de Nengua Kassutu trouxe ao barracão a gamela que continha todos os elementos utilizados no processo de iniciação e diante de todos. Nzazi entrega a gamela para Kota Xagui (a esta altura, ainda Kota e com 12 anos de iniciação). Ajoelhada diante de Nzazi, surpresa por sua atitude, ela implorou para que ele não fizesse aquilo, pois temia que esta entrega representasse a morte de sua mãe Arcanja: “Na hora eu chorava e ele lá me entregando a gamela, e eu dizendo ‘não senhor, o senhor não pode fazer isso comigo, eu não posso tomar a espada da mão do jogador’”.

Trinta anos se passaram desde 10 de agosto de 1976, quando Nengua Kassutu cumpriu um ciclo. Mãe Xagui recorreu a Taata Esmeraldo Emetério de Santana (Kondiandembu) e a Taata Macofá para realizarem o Mukondu/Ntambi. No ano seguinte (1977), a determinação de Tat’etu Nzazi foi confirmada, pois o Nkisi exigiu que a sucessora do Tumbancé fosse uma filha de Oxalá.

Desde então Nengua Xagui assume o Terreiro Tumbancé com amor, retidão e resignação. A Nengua recolheu seu primeiro barco composto por três filhas-de-santo em 1979 e atualmente registra-se aproximadamente 80 filhos-de-santo.

Texto: Ascom Ilabantu/Nzo Tumbansi com colaboração de Makota Veridiana Machado (Mayangasi)

Fotos: Márcio Brito Neto diretor de: “Muzenza, O Filme” e Koota Mujikwele (Gleyse Evelyn)