O que a razão, faculdade indispensável à ciência e a tecnologia, tem a ver com a fé e os terreiros de candomblé e umbanda? É sabido que esses territórios espirituais e políticos de re-existência são fundamentais à preservação do patrimônio cultural afro-brasileiro, mas é preciso dizer que eles também são portadores de certas racionalidades e tecnologias que transcendem o aspecto meramente “religioso”, oferecendo à toda a sociedade um repertório de saberes, práticas e perspectivas emancipatórias.
Esse aspecto ficou óbvio no encontro “Terreiro, fé e razão”, organizado por Tata Nkisi Katuvanjesi, ocorrido no último domingo, 17/11, no Inzo Tumbansi, em Itapecerica da Serra. O encontro contou com a presença de filhos e filhas da casa e de convidados ilustres que contribuíram para uma reflexão crítica sobre conjuntura nacional e mundial e, sobretudo, a respeito dos desafios dos povos de terreiro nesse contexto.
Tata Katuvanjesi abriu o encontro saudando os presentes e lembrando da diversidade cultural existente na formação do Brasil. O nagocentrismo, de origem racista e acadêmica acabou influenciando a visão dos próprios negros a respeito de si e da África. Ao mesmo tempo, Tata enfatizou as raízes “bantu” da alma cultural brasileira. Um elemento muito destacado por ele foi a importância de espaços para de diálogo, formação e reflexão, entre os povos de terreiros, sobre as grandes questões do nosso tempo. Sua fala foi seguida por Mãe Marilda, da Tenda de Umbanda Fraternidade Pai João da Caridade, de Pirituba, zona norte de São Paulo, que enfatizou a importância da umbanda e do cuidado aos mais velhos. Esse tema sensibilizou os presentes.
Outra contribuição importante, oferecida pela Kota Ndembwemi, chamou a atenção para o caráter educativo do terreiro. Para ela, as políticas de educação também precisam estar atentas e fomentar iniciativas de educação nos terreiros. Aproveitando a presença da vereadora Luana Alves, no evento, a Kota mencionou a importância de projetos de lei que monitorem a implementação da legislação educacional antirracista, como é o caso das Leis 10.639/03 e 11.645/08 que alteram a LDB tornando o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígenas obrigatórias no sistema de ensino.
A Vereadora Luana, primeira mulher negra a ser reeleita na Câmara dos Vereadores em São Paulo, fez uma análise de conjuntura falando da violência policial, das políticas educacionais, nocivas a todo o povo negro e de terreiro, que visam militarizar a gestão das escolas e, sobretudo, da crise climática, que afeta diretamente o povo de santo e demais comunidades tracionais. No entanto, enfatizou a contribuição dos terreiros para uma outra agenda ambiental pautada por uma ética de integração entre ser humano e natureza.
Representando o Movimento Pretas liderado pela deputada estadual Mônica Seixas, e Emancipa Axé, esteve presente a assessora parlamentar Anna Carolina.
O advogado Paulo Arruda, Tata Nkisi Onidanjy, falou do racismo religioso e das possibilidades jurídicas de insurgência. Do mesmo modo, a Makota Danda e a Makota Mikayodô, refletiram sobre o quanto o racismo, muitas vezes, se manifesta em padrões estéticos que excluem as mulheres negras e os seus cabelos. Makota Danda lembrou que as vezes a estética eurocêntrica é reproduzida até mesmo dentro dos terreiros e a Makota Mikayodô falou da importância das tranças para a auto-estima das mulheres negras. O encontro também contou com a militante negra Hosana, do movimento negro de Mauá, que falou de sua experiência desafiadora como uma mulher negra de esquerda e ao mesmo tempo, a importância política das culturas negras – onde ela destaca o samba.
Ao fim, o moderador do debate e filho da casa, Tata Mwendexi, professor doutor Deivison Nkosi, retomou o tema do encontro para dialogas com as falas anteriores, lembrando que o povo de santo é portador de saberes e de uma forma não cartesiana de lidar com a razão. Enquanto os europeus modernos tiveram que romper com a fé para afirmar a ciência, em um contexto de repressão a qualquer verdade que ameaçasse o poder da igreja, fé e razão aparecem integrados nas diversas culturas africanas que chegaram às Américas. O cosmograma Bakongo da Dikenga foi utilizado para explicar essa integração entre razão e emoção, noite e dia, vida e morte, sagrado e material que compõe a percepção angoleira de mundo.
O debate foi muito rico e contou com a participação de inúmeros filhos e convidados que também contribuíram para as reflexões. A assistente social Isabela Cristina, técnica do Centro de Referência de Igualdade Racial da Zona Oeste de São Paulo falou da importância das políticas públicas de proteção e denuncia a casos de racismo religioso ou não – destacando o próprio Centro de Referência que atua como um espaço que acolhe denúncias. Outros participantes destacaram aspectos de gênero e etário nas várias formas de manifestação do racismo bem como os desafios ideológicos colocados em uma época em que as ideologias da extrema direita tem capturado o imaginário da periferia.
Ao Final, Tata Katuvanjesi agradeceu a presença e participação de todas pessoas presentes lembrando que a tecnologia de cuidado do terreiro envolve uma razão integrada à política e ao corpo. Lembrou que é papel dos terreiros discutir e se posicionar diante da conjuntura política, mas sobretudo, cuidar do corpo, por isso, convidou os participantes à um banquete sagrado – porque para o terreiro a vida é sagrada – para o alimentar fisico e espiritual.