Unindo educação e sagrado no lançamento do Kit Educativo Africano e Afro-Brasileiro no Inzo Tumbansi

Unindo educação e sagrado no lançamento do Kit Educativo Africano e Afro-Brasileiro no Inzo Tumbansi

Unindo educação e sagrado no lançamento do Kit Educativo Africano e Afro-Brasileiro no Inzo Tumbansi

Texto: Eliane Almeida (Makota Tembwa Nkulu)
Colaboração: Liliane Braga (Kota Ndembwemi)
Revisão: Tata Nkisi Katuvanjesi

Foi na sexta-feira, dia 14 de março, que se iniciou a preparação da cerimônia de lançamento do Kit Educativo Africano e Afro-Brasileiro projeto colaborativo organizado pelo Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo do qual o Instituto Latino Americano de Tradições Afro Bantu (ILABANTU) faz parte. O Inzo Tumbansi, localizado em Itapecerica da Serra, foi o palco do evento que aconteceu no sábado, dia 15 de março. Tata Katuvanjesi e Kota Ndembwemi contribuíram na construção do material. Tata Katuvanjesi dispôs de seus conhecimentos e do acervo material do Inzo Tumbansi para consulta por parte da equipe que trabalhou no Kit. Tanto ele como Ndembwemi contribuíram com textos na publicação do projeto, que se encontra disponível no repositório online da USP para baixar em PDF [https://www.livrosabertos.abcd.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/1523].
Depois de 40 anos de trabalho produzindo kits educativos baseados em museologia, o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP) cria, pela primeira vez, um kit que se dedica à cultura africana e afro-brasileira. O projeto gestado em 2022 só foi possível quando o conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), e Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) abriram chamada em edital na Linha “Divulgação científica e educação museal em espaços científico-culturais”. A aprovação na chamada em questão tornou possível a realização do projeto.
A participação do Tata Katuvanjesi no processo possibilitou um aprofundamento no valor sagrado dessa iniciativa e atesta o compromisso que o líder religioso tem com a educação e manutenção dos valores da matriz cultural bantu, da qual descende o terreiro. Os filhos e filhas da casa participaram da celebração, nos bastidores e protagonizando as atividades na ocasião desse lançamento. Como filhos do Inzo Tumbansi, nos dedicamos ao bom funcionamento de nossa casa sagrada, que foi preparada com esmero para a recepção de nossos convidados. As escadas foram cuidadosamente pintadas, a casa do Senhor Tempo teve seu branco retocado. O Akanzalê (Salão) estava com o seu verde ainda mais verde. O terreiro foi limpo e organizado sempre pensando no bem-estar de quem viria para a celebração, cujo público foi constituído majoritariamente de profissionais da educação.
A grande preocupação era o espaço para acolher os convidados com conforto e cuidado. Organizadas de forma intercaladas, as cadeiras foram dispostas de forma que quem estivesse atrás não tivesse sua visão prejudicada por quem estivesse à frente. Aparelho de som instalado e devidamente testado, projetor posicionado. A mesa que abrigou as autoridades foi adornada com panos africanos de padrão azul e amarelo que contrastavam com o marrom escuro das estátuas dos Bankisi dispostos sobre ntoto (chão sagrado), a frente dela. Em torno deles, um tapete de folhas verdes e deitadas sobre as folhas estavam máscaras africanas que costumeiramente enfeitam as paredes do Inzo Tumbansi.
Antes do sol apontar no céu do sábado, dia 15 de março, dia da festança, a Mãe Criadeira, Kota Sinderewi, já estava na Kikuku (cozinha, em kikongo) iniciando os trabalhos das Madya (comidas, em kikongo) – um banquete à moda tradicional africana – que seria servido aos convidados. Em casa de Candomblé a fartura é sempre presente. Aos poucos os filhos e filhas do terreiro foram acordando e com isso a casa foi tomando vida. O cheiro dos temperos e das iguarias preparadas por kota Sinderewi tomaram conta do espaço sagrado lembrando que a boa comida deixa os Bankisi felizes. E nossos estômagos, ansiosos.
Pouco antes das 11h00, horário que estava marcado o início da celebração, convidados e visitantes foram chegando e ocupando espaços do Terreiro, se acomodaram em cadeiras, outros buscaram conhecer a estrutura do Inzo Tumbansi, seu entorno e suas práticas. Olhos curiosos em todos os cantos possíveis para aqueles que não são “feitos-de-santo”. Mal sabem eles os segredos e magias que estão escondidos por trás das portas que guardam nosso sagrado mais profundo.


Foi com a chegada da matriarca do Terreiro Tumbenci de Maria Neném, de Salvador, Nengwa Lembamuxi, acompanhada de Tata Katuvanjesi, que os atabaques ressoaram e a celebração foi iniciada. Do alto de sua realeza, Nengwa Lembamuxi falou da casa de onde vem, o Terreiro Tumbenci, de Nengwa Tuenda dya Nzambi ou Maria Neném, o primeiro terreiro de candomblé Kongo Angola do Brasil, de feição bantu, situado no Beiru, periferia de Salvador, precisamente no Kilombo Kabula.
“Não gosto de brincadeira e levo o terreiro a sério. Assumi o terreiro aos 24 anos. Sou uma mulher negra, com pé no chão e cabeça erguida. Filha de uma mulher negra, lavadeira, quem me ensinou o que era o candomblé. Estou aqui hoje dirigindo o Terreiro Tumbenci e fui criada vendo minha mãe cuidando de todas as coisas dos santos. Eu sou Lembamuxi, e vamos agora pedir licença a quem é de direito! ”
E assim, Vó Lembamuxi invocou os atabaques e saudou Nzila, o dono dos caminhos a quem se deve pedir licença para abrir os trabalhos. Ouvir a voz de nossa avó rezando em nosso Inzo é algo que transcende qualquer explicação. É força que se manifesta na voz. É energia capaz de ser tocada pela sua densidade”.

Representantes do Geledés, MAE-USP, Museu Afro Brasil Emanuel Araújo e Prefeitura de Itapecerica da Serra falam da importância do Kit Educativo Africano e Afro-Brasileiro

Diversas falas foram se seguindo após a abertura feita por Vó. O vice-Diretor do MAE-USP, professor doutor Camilo de Mello Vasconcellos, falou de sua honra em estar na condução do projeto que foi construído de forma colaborativa. “O Kit está pronto para uso. Pretende-se que ele se torne um instrumento de luta na construção de uma sociedade mais diversa, afinal sobrevivemos aos tempos das trevas. Esse é um caminho sem volta. A universidade sai do castelo e vem dialogar com outras academias. O kit nasce como instrumento de luta contra o racismo”, disse o professor.
Tata Katuvanjesi, de posse do microfone, saúda a todos os presentes e os nomeia pela importância que têm na manutenção da cultura bantu e na luta contra o racismo. É o caso de Suelaine Carneiro, coordenadora de Geledés Instituto da Mulher Negra, e com o qual o Inzo Tumbansi celebra uma recém-estabelecida parceria. Suelaine Carneiro disse ser um prazer estar num território de resistência e educação. “A relação do Geledés com o terreiro vem da caminhada do movimento negro. Lutamos juntos pelo pagamento da dívida de reparação histórica. A religião de matriz africana é estratégica no enfrentamento ao racismo e ao sexismo. Ambos buscamos por justiça e neste momento de violência global por conta do racismo anti-negro é precisa união”, concluiu.
A representante do Museu Afro Brasil Emanoel Araújo, Simeia Araújo, colaboradora na construção do Kit Educativo, agradeceu por poder contribuir com o projeto principalmente que possibilitou “encontros de epistemologias”. Ela segue dizendo que o projeto deu ferramentas para se repensar nossos paradigmas. “Espaços como o Inzo Tumbansi são importantes para a construção de novas formas de pensar. Acredito de fato na educação e acredito nela como possibilidade de transformação”.
O idealizador do projeto, o educador museal, Maurício André da Silva, fala do enorme aprendizado com a sua execução. Ele acredita que esse foi somente o ponto de partida e que não há um ponto de chegada para esse projeto. “O Kit Educativo Africano e Afro Brasileiro pretende ser um provocador e serão alteradas conforme os professores forem utilizando o kit. As ideias iniciais começaram há dois anos e o kit está aberto a novas adequações. Espero que essa parceria permaneça e que atue mais fortemente nessa transformação da academia”, sentenciou.
Autoridades vinculadas à Prefeitura de Itapecerica da Serra, como a secretaria de cultura, Soraia Leal e o diretor de cultura, ex-vereador petista Fabio Santana, compareceram à cerimônia. A secretária de Cultura, Soraia Leal, afirmou que o kit nasce com o objetivo de ser instrumento da luta contra a ignorância que alimenta um racismo que mata. “A gestão do município hoje tem o objetivo de travar lutas contra o racismo e firmaremos compromisso com o Ministério da Igualdade Racial de sermos uma cidade antirracista, articulação construída por Tata Katuvanjesi”.
Também esteve presente o presidente da Câmara de Vereadores de Itapecerica da Serra, vereador Cícero Melo, que se colocou à disposição para a realização de projetos futuros. Sobre o Kit Educativo Africano e Afro-Brasileiro e o projeto que deu origem a ele, o vereador enxerga a iniciativa com otimismo. “Nos deparamos diversas vezes com projetos que levam décadas para acontecer. Espero que todo esse trabalho seja um legado para uma história próxima. O que tenho certeza é que o compromisso de Taata Katuvanjesi é garantir que o kit seja utilizado ao longo do tempo”.
A apresentação do Kit em detalhes foi realizada pela arqueóloga Patrícia Marinho (Paty Marinho) que contribuiu com profunda dedicação na realização do projeto e contou com a participação de Maza Diampungo e Patrícia Cerqueira, filhas de santo do Inzo Tumbansi e educadoras que participaram da primeira turma de formação para a utilização do Kit em suas unidades de trabalho. Patrícia Marinho explica que o projeto necessitava de uma orientação da perspectiva da religiosidade afro-brasileira e foi nesse sentido que Tata Katuvanjesi foi convidado para atuar como consultor do universo sagrado de matriz africana. Patrícia falou também da importância de haver pessoas negras na equipe. “O kit só é o que é porque tem a participação das pessoas negras do terreiro, do Museu Afro Brasil Emanoel Araújo, da comunidade da USP. Foi uma grande vitória para o projeto termos pesquisadores negros trabalhando nele”.

O que há no Kit Educativo Africano e Afro-Brasileiro?

Foto: Liliane Braga

No evento realizado no nosso chão sagrado aconteceu também a exibição, em primeira mão, do documentário sobre o Kit Educativo Africano e Afro-Brasileiro, com direção de Ader Gotardo e narração de Patrícia Marinho de Carvalho (Paty Marinho), da Rede de Arqueologia Negra (NegrArqueo), LINTT-USP e UFPel. A narrativa retrata como se deu o processo colaborativo entre as instituições que trabalharam para compor o Kit Educativo Africano e Afro Brasileiro. Tata Katuvanjesi e Kota Ndembwemi estão presentes no documentário, e cantigas entoadas pela comunidade do Inzo Tumbansi abrem e fecham a produção. Estão ali belas cenas captadas no Inzo Tumbansi. A fala de nosso líder tradicional na produção aponta as contribuições de povos Bantu para a formação do Brasil. Já Ndembwemi fala do jogo da família Mancala cujo tabuleiro está presente no kit. No Oeste africano, esse jogo é conhecido por diversas nomenclaturas, mas no material em questão são abordados o Oware e o Awelé, presente na política pública do sistema de ensino do município de São Paulo. Política pública da qual Ndembwemi tem participado, desde 2015, realizando formação de docentes. O vídeo, que está passando por ajustes finais, será lançado em breve no YouTube do MAE-USP. A divulgação do lançamento será feita em nossas redes sociais. O material didático é formado por instrumentos musicais, adornos, estátuas sagradas e mapas que localizam de onde esses objetos são oriundos e o fluxo marítimo mostrando de onde foram sequestrados os africanos que foram escravizados nas Américas.
Para ter acesso ao kit é preciso passar por formação oferecida pelo Museu de Arqueologia e Etnografia da USP. Os e as docentes interessados/as poderão acessar as peças que compõem o Kit Educativo Africano e Afro-brasileiro para fins educativos em suas unidades de ensino. Para maiores informações, entre em contato pelo e-mail educativo.mae@usp.br .